Histórias que o Brasil não via

Valerya Borges
Escrito originalmente para a revista CartaCapital. Publicado em 18/12/2024.

“Existe uma história do negro sem o Brasil. O que não existe é uma história do Brasil sem o negro.” A frase, do fotógrafo e ativista do movimento negro Januário Garcia, está nas primeiras páginas de Projeto Querino – Um Olhar Afrocentrado Sobre a História do Brasil. A obra é um desdobramento do projeto homônimo lançado em 2022 e batizado com o sobrenome do jornalista, professor e abolicionista Manuel Raimundo Querino, autor do livro O Colono Preto Como Fator da Civilização Brasileira (1918).

Ao longo de 400 páginas, Projeto Querino percorre a história do País, iluminando a existência e a contribuição de figuras como o próprio Querino, Maria Felipa e Mestre Tito – nomes pouco conhecidos pela maioria de nós, mas que contribuíram para que nos tornássemos a nação que somos.

À frente do Projeto Querino está Tiago Rogero, de 36 anos, negro de pele clara, jornalista, mineiro e atleticano, como ele mesmo se apresenta. Nascido e criado em Belo Horizonte, Rogero conta que desejava ser jornalista desde a adolescência. Na faculdade, descobriu e se encantou por temas relacionados à área de Direitos Humanos e prometeu a si mesmo que faria o possível para trazer essa pauta para seu cotidiano.

Ele trabalhou algum tempo em rádio na capital mineira até que uma boa oportunidade profissional em mídia impressa o levou a estabelecer-se no Rio de Janeiro, onde reside até hoje – atualmente, ele é correspondente do The Guardian na América Latina.

Foi durante o Salão Carioca do Livro, em 2018, que ele ouviu um questionamento que se tornaria elemento fundamental para seu trabalho dali em diante. No evento, a escritora Conceição Evaristo questionou: por que se ensina sobre a Revolução Farroupilha nas escolas, mas não sobre a Revolta dos Malês?

“Aí eu parei para pensar que, de fato, tinha ouvido falar sobre a Revolução Farroupilha, mas quase nada sobre a Revolta dos Malês”, conta o autor, lembrando do momento em que se deu conta de que sabia muito pouco sobre a participação das pessoas negras na linha do tempo do Brasil.

Durante anos, a narrativa dos livros de História mencionava os negros apenas como escravizados, sem atuação muito relevante, reservando destaque para personagens, em sua maioria, brancos.

Apesar da aprovação da Lei 10.639,de 2003, que tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira nas escolas e instituiu o 20 de novembro como Dia da Consciência Negra, a forma como se ensinava a história das pessoas negras no Brasil pouco havia evoluído.

Em 2018, Rogero iniciou uma busca por essas histórias não contadas. Apaixonado por podcasts, ele criou, em 2019, o Negra Voz, que reúne 30 episódios e é centrado em figuras negras. Na mesma época, teve contato com o 1619 Project, criado pela norte-americana Nikole Hannah-Jones e lançado em 2019 pela The New York Times Magazine. A iniciativa visa registrar os efeitos da escravidão na história dos Estados Unidos e as contribuições negras para aquela nação.

“Fiquei encantado com o 1619 Project. Por coincidência, nesse mesmo ano, fui para os Estados Unidos fazer um programa de estudos no ICFJ ( International Center For Journalists). Passei quatro semanas em Washington e, durante esse tempo, fui diversas vezes ao Museu de História Afro-Americana. Em várias das minhas idas, ouvia o 1619”, relembra. Ao voltar ao Brasil, Tiago conheceu a equipe da Rádio Novelo e, da conversa, surgiu a ideia de se fazer uma versão do 1619 Project à brasileira – justamente, o Projeto Querino.

Lançado como um podcast de oito episódios, em 2022, o projeto desdobrou-se em matérias publicadas na revista Piauí e, agora, ganha forma de livro. “O podcast não é uma mídia popular porque vivemos em um País com profunda desigualdade de acesso à internet. Muita gente não consome podcasts, mas tem acesso aos livros”, diz. “Isso também amplia a possibilidade de que esse conteúdo seja trabalhado em sala de aula.”

Durante um ano, Rogero trabalhou para transpor para o papel o material disponível em áudio, nas plataformas de streaming, desde 2022. O resultado foi uma versão revista e ampliada. A matéria-prima é a mesma, mas os resultados são distintos.

Quando questionado sobre as transformações que vivenciou ao se deparar com tantas narrativas escondidas, Rogero não pode deixar de falar também sobre si: “Acho que fiquei mais calmo, mas também com mais raiva. Costumo trabalhar bem com a raiva. Acho que o Projeto Querino bebe da raiva, mas de maneira calma, sempre trazendo uma grande reflexão e buscando uma abordagem empática e justa”.

Ele acredita que uma das razões para o sucesso do podcast – que acumula mais de 2 milhões de reproduções – seja a linguagem simples e direta. “Toda vez que escrevo algo, penso nas amigas da minha mãe, na periferia de Belo Horizonte. Tem de ser direto e simples o suficiente para que, mesmo elas, que não tiveram os privilégios de uma educação formal, possam compreender”, diz.

Agora, ele deseja que o livro alcance o máximo possível de pessoas negras. Na introdução, Rogero afirma tratar-se de um livro-reportagem, pois, embora trate de história, está profundamente ancorado no presente.

Projeto Querino, diz ele, foi pensado tanto para fortalecer a autoestima da população negra quanto para ampliar o conhecimento sobre a condição atual das pessoas negras no Brasil: “É um livro que pretende oferecer mais informações às pessoas, para que estejam mais bem preparadas para tomar decisões políticas, e ajudar as pessoas negras a se informar mais sobre si e refletir e se posicionar melhor no mundo”.

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