Uma mulher nada comum

Valerya Borges
Escrito originalmente para a revista CartaCapital. Publicado em 25/12/2024.

“Menina… Essa história começou há 81 anos…”. É com uma voz calma e suave que a pesquisadora, escritora e professora Helena Theodoro dá início à conversa. Os olhos brilham ao recordar suas origens durante o encontro com CartaCapital, em meio à ocupação Trilogia Matriarcas, homenagem à sua vida e obra em cartaz no anexo do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), em São Paulo.

Com uma programação que inclui teatro, música, audiovisual e rodas de conversa, o projeto celebra os 80 anos de trajetória de Helena. Mas quem é, afinal de contas, essa mulher para quem o CCBB abre as portas? Trata-se de uma figura destacada da academia brasileira e um ícone do Movimento Negro.

Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, ela faz mestrado na mesma universidade e, em 1985, tornou-se, pela Universidade Gama Filho, a primeira mulher negra doutora em Filosofia no País. E, sempre que pode, ela pontua: seu doutorado foi em Filosofia Africana. Helena Theodoro escreveu sua história levando para o meio acadêmico a cultura negra, mais especificamente o samba, em um momento em que isso era algo totalmente inesperado, sobretudo para uma mulher negra.

A programação do CCBB é ancorada em três espetáculos teatrais inspirados nas vivências da autora, que assina os argumentos das peças. Cada texto carrega um pouco dessa intelectual nascida no bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro, em 1943.

Helena é filha única de um casal de negros militantes, que se conheceram fazendo curso superior no Liceu de Artes e Ofícios. O fato de não ter mais irmãos foi uma escolha consciente dos pais. “Eles optaram por ter apenas um filho, para que pudessem me dar acesso à educação e uma vida melhor”, conta a pesquisadora.

A primeira peça, Mãe de Santo, apresenta uma reflexão sobre os diversos papéis que as mulheres negras desempenham ao longo da vida, abordando questões de ancestralidade e espiritualidade, extremamente importantes para Helena.

Criada em uma família umbandista, com um pai comunista que acreditava que a religião era o ópio do povo, a escritora encontrou definitivamente sua espiritualidade em 1978, quando fez a iniciação no Candomblé e tornou-se filha de santo do Ilê Opo Afonjá, casa comandada em Salvador pelo artista plástico Mestre Didi.

O segundo texto, Mãe Baiana apresenta questões como o luto e a memória afetiva através da relação entre avó e neta. No espetáculo, a avó lida com a perda do neto, luto bastante conhecido por Helena, que perdeu um filho aos 4 anos, por afogamento.

Em 2022, a peça tornou-se um filme, que tem a atriz Léa Garcia como uma das protagonistas. A atriz, falecida em 2023, também é homenageada na ocupação, com a exposição Baobá de Memórias – uma homenagem a Léa Garcia. O encontro das duas, no CCBB, não tem nada de fortuito: Léa foi uma das melhores amigas da mãe de Helena.

“Na minha vida, o teatro sempre foi muito presente. Minha mãe era apaixonada pelo Teatro Experimental do Negro, muito amiga de dona Léa Garcia”, conta Helena. “Ela ficou a vida inteira trabalhando na agência dos Correios e Telégrafos da Praça Mauá, onde era a Rádio Nacional, e conhecia todo mundo. Já naquela época, ela e meu pai eram militantes do Movimento Negro.”

O círculo social e a vivência familiar fizeram com que a menina crescesse rodeada por política e muito consciente de seu papel e seu lugar no mundo.

A arte também sempre se fez presente na vida da pesquisadora, que estudou balé por seis anos, tendo chegado a integrar a escola do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, e piano por 11. “A família da minha mãe era muito musical. A gente morava na Tijuca, em casas rodeadas por negros sindicalizados, muito conscientes de seu papel como trabalhadores, mas também muito musicais”, recorda. Os fins de semana eram marcados por encontros regados a boa comida e boa música.

Ao virar adulta, Helena contribuiu para aumentar o contingente de músicos do clã, não só com seu talento, mas agregando ao grupo o cantor, compositor e pesquisador Nei Lopes, com quem começou a namorar na faculdade de Direito. Foi desses encontros que surgiu a inspiração para um dos maiores sucessos de Nei Lopes, Tempo de

Dondon, eternizada nas vozes de Zeca Pagodinho e Dudu Nobre. “Dondon era meu tio, casado com minha tia Alice. Quando comecei a namorar Nei Lopes, ele se integra na minha família. Ele morava no Irajá e tinha um grupo de chorinho, mas ele vai ter contato com cultura negra, escola de samba, com a minha família”, conta a pesquisadora.

O casamento, marcado por muita música e trocas, chegou ao fim, mas rendeu dois filhos. A partida de um dos meninos serviu como inspiração para o argumento de Mãe Baiana. Já a retomada da vida após a grande perda serviu como ponto de partida para o terceiro espetáculo da trilogia, Mãe Preta, que mostra a jornada de uma mulher negra que busca reconstruir sua vida, reafirmando sua independência.

“Antes de o Brício nascer, meu casamento já estava no fim, e eu, como mulher, morta há muito tempo. Foi após a morte do meu filho Brício que, ao chegar no fundo do poço, tive de me reerguer e reencontrar a Helena Theodoro que hoje todos conhecem”, afirma a autora.

A história de Helena Theodoro espelha uma parcela da população negra que passa longe do estereótipo. Culta, com uma educação esmerada, poliglota, multiartista, intelectual respeitada, Helena é o retrato de uma classe média negra que construiu e pensou o Brasil de maneira sistêmica e efetiva. Conhecê-la, é ter acesso a outra perspectiva da população negra no Brasil nos séculos XX e XXI.

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