Fios da Memória

Em ‘Esse Cabelo’, Djaimilia Pereira narra o processo de aceitação do cabelo crespo

Valerya Borges
Escrito originalmente para a revista Carta Capital. Publicado em 01/04/2022.

“A verdade é que a história do meu cabelo crespo intersecta a história de pelo menos dois países e, panoramicamente, a história indireta da relação entre vários continentes: uma geopolítica”. Essas palavras são de Mila, protagonista de Esse cabelo, de Djaimilia Pereira de Almeida, jovem negra nascida na capital de Angola, Luanda, em uma família inter-racial, e criada em Portugal.

No livro, o cabelo crespo vira sujeito, quase como se ganhasse vida própria. Ao longo das páginas, a protagonista apresenta as memórias da infância, que incluem os muitos tratamentos capilares a que foi submetida, além de recordações de familiares – entre eles, as avós, uma negra, outra branca –, momentos de afeto, descobertas e dúvidas. Cada lembrança tem o cabelo em primeiro plano e guarda em si o universo interior da personagem narradora, que surge sempre como forasteira em seu próprio país, seja esse o país qual for, Portugal ou Angola.

Em tom autobiográfico, Esse cabelo apresenta uma alegoria afetiva que, em um primeiro momento, pode dar ao leitor a impressão de estar entrando em contato com a história da própria autora. Até o nome é parecido. Mas Mila não é Djaimilia. Não pessoalmente. Em entrevista concedida a CartaCapital, via Zoom, a autora, que acaba de se mudar para Zurique, onde fará uma residência artística, conta que o livro nasceu do desejo de ver retratada, em uma obra literária, a complexidade de uma mulher negra.

“Muitas vezes, como leitora, me senti defraudada por não encontrar na literatura do meu país o testemunho de personagens de origem africana que surgissem em toda complexidade de sua intimidade, de uma forma não caricatural, não estereotipada”, diz ela.

Mila é essa mulher complexa. Como também são complexas sua relação com seu cabelo e a relação das outras pessoas com ele. O cabelo é sujeito e predicado, caminho e ponte. Seus fios guardam toda a conexão de Mila com sua ancestralidade. Mesmo quando ela ainda não tem consciência disso, a conexão está lá. Africana em diáspora, a narradora traz em si, o tempo todo, o não-pertencimento.

Da negação do cabelo, traço fenotípico marcante, passando por todos os episódios para deixá-lo mais adequado, mais arrumado, domado, ao encontro de sua fonte primária ancestral dentro de si, toda a narrativa traz o cabelo como significado e significante.

Lançado em 2015, em Portugal, o livro chega agora ao Brasil em edição da Todavia. Os quase 10 anos que separam a edição portuguesa da brasileira não foram, porém, suficientes para datar a história. A jornada de Mila é a mesma de tantas outras mulheres negras que, para se conectarem com o próprio cabelo, atravessam um processo longa e conturbado, que passa pela autoaceitação e pelo reencontro com sua identidade.

A própria autora conta ter trilhado esse caminho de conexão com sua estética. E, a partir do livro, pôde entrar em contato com uma rede de mulheres portuguesas com vivências muito parecidas. Ela recorda que um dos momentos mais importantes no percurso de Esse cabelo aconteceu logo após o lançamento em Portugal, quando enviou exemplares de presente para algumas produtoras de conteúdo portuguesas, todas negras, que faziam vídeos sobre cabelo.

“De repente, essas moças começaram a levar o livro para dentro de seus vídeos e a falar sobre ele. Isso me deixou emocionada. Desde o início, minha intenção era tentar partilhar. Então, vi que havia um processo de identificação extraordinário. Percebi que não estava sozinha em minha inquietação, que havia muitas moças como eu, que sentiam coisas muito parecidas”, revela.

Mila não é Djaimilia. Mas também é. E a complexidade de seu mundo é um convite.

Às mulheres negras, é um convite para uma conversa familiar, quase um papo entre amigas, em que se ouve uma história nova, mas de alguma maneira conhecida. E também para se ver nesse espelho e encarar rosto e cabelo de frente.

Aos outros leitores e leitoras, o texto é a oportunidade de conhecer um pouco mais dessa mencionada geopolítica, e acompanhar Mila nessa busca pelo próprio lar.

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