Valerya Borges
(escrito originalmente para o jornal PropMark em 10/01/2022)

É impressionante a força e o poder do coletivo. Quando muitas pessoas se unem em prol de algo comum, uma egrégora se forma. E a potência disso é imensa. Egrégora, substantivo feminino que fala da força espiritual que resulta do soma das energias mentais, físicas e emocionais de uma ou mais pessoas reunidas em grupo. A etimologia da palavra remete ao grego egrêgorein, que significa velar, vigiar. E estar em grupo é isso: velar, vigiar, zelar pelo todo e pelo outro. Ou pela outra. No meu caso, é só começar a pensar em inspiração que me vem à mente a capacidade transformadora do coletivo, dos coletivos. Mais especificamente de um coletivo em especial: o Bloco Afro Ilú Obá de Min. O nome, uma licença poética, significa “Mãos femininas que tocam tambor para Xangô” (Ilú = tambor; Obá = Xangô/rei; De Min = em livre adaptação, mãos femininas).
Formada por mais de 400 mulheres que propagam e mantêm viva a cultura afro através da força dos tambores, o Ilú é “casa”, casa essa da qual tenho a felicidade e a honra de fazer parte desde 2016. Ao longo dos últimos cinco anos, a vivência no Ilú Obá funciona para mim os dias como fonte profunda de inspiração e pertencimento. Desde 2005, as mulheres do Ilú Obá de Min emanam força, arte e ancestralidade pelas ruas de São Paulo, ocupando o espaço público com a cultura negra, que durante tanto tempo foi relegada a um segundo plano e, muitas vezes, colocada à margem. O trabalho que as mestras fundadoras realizaram desde o início é lindo, consistente e tornou possível que outras mulheres como eu, ao longo dos anos seguintes, conseguiram se unir e somar com essa “nação”, como chamamos carinhosamente nossa Ilú.
Essa foi minha primeira experiência em um coletivo. Primeira e avassaladora, definitiva. E isso fez com que eu, pessoal e profissionalmente, tivesse minha perspectiva de mundo completamente transformada. De maneira profunda e permanente. Parece exagero, mas não é. O Ilú perpassa tudo o que eu fiz e faço depois de 2016. Absolutamente tudo. Inclusive o espaço que ocupa hoje, o trabalho que desempenho na VMLY&R na área de Diversidade, Equidade e Inclusão. A cada projeto criado, a cada pequeno avanço, cada vez que entro e faço o que tenho que fazer, os tambores do Ilú ressoam em mim. Sempre.
Apesar de estudar DE&I já há alguns anos, minha grande escola do diverso, do plural é o bloco. São centenas de mulheres diferentes, com trajetórias e visões diferentes, profissões, perspectivas de vida tão díspares… Sempre aprendo algo sobre escuta, sobre troca. Cada uma das minhas companheiras de caminhada conversa com uma parte minha, incluindo aquelas que, muitas vezes, eu ainda nem conhecia. Ali aprendo e reaprendo que discordar é revelador e produtivo, que posso fazer coisas que nunca imaginei na vida, que o além é daqui a pouco.
Mesmo tendo muita vontade de aprender, nunca pensei que seria realmente capaz de tocar um instrumento de forma minimamente decente. Nunca. Vinda de uma família de músicos homens, para mim isso parecia algo distante, muito distante. O Ilú Obá me provou possível, me fez musicista, compositora, me levou a palcos que nunca imaginei, me trouxe vivências lindas e marcantes. Nessa convivência vi e vejo florescer em mim e em muitas das mulheres, todos os dias, habilidades que nenhuma de nós sequer sonhava possível.
Essa capacidade de ver além, de acreditar na imaterialidade, de sonhar sonhos imensos e vê-los realizados… Tudo isso torna meu trabalho possível, faz com que meu estar no mundo tenha ainda mais sentido. E o exercício dessa capacidade eu tenho no meu dia a dia como iluobástica que sou, com muito orgulho.
Mesmo durante esses quase dois anos em que enfrentamos os desafios trazidos pela pandemia, estarei lá na realidade. Buscamos maneiras de manter o vínculo, durante longos meses com ensaios virtuais, mas também com mensagens de apoio, telefonemas, presença, mesmo que não física. Fizemos isso porque o que nos é maior, porque essa foi a forma que nos encontramos de seguir cuidando umas das outras, e porque nossa arte é vida. Em meio a tanta incerteza, tanta dor, esse alento nos fortaleceu — para mim, pelo menos, foi fundamental para manter minha sanidade, para me ajudar a sonhar futuros, mesmo na fase mais nebulosa.
É essa força feminina que me inspira, a força daquelas mais de 400 mulheres maravilhosas, todas as lições, grandes e pequenas, que tenho com elas dia após dia. Sem esquecer, claro, da mulher potente que me formou, minha mais velha, minha mãe, Dalva, que com sua presença gigante segue sendo inspiração diária e primordial. São essas mulheres que se reforçam em mim o propósito. Elas seguem comigo a cada passo, me lembram que não ando só e que essa força de pertencimento vai comigo por onde eu for. Porque assim como egrégora, mudança e transformação também são substantivos femininos. Como também é feminina essa entidade Ilú Obá de Min. À benção para minhas mais velhas e para minhas mais novas, meus luminares.
Valerya Borges é diretora de diversidade, equidade e inclusão da VMLY&R
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